Tuesday, July 04, 2006

a vergonha está hoje em Aveiro

Há coisas neste país que me fazem sentir particularmente envergonhada de ser portuguesa, de ter uma bandeira verde e encarnada pendurada a cada esquina, de ter nascido neste paraíso natural à beira-mar plantado mas que tão longe está de certas noções de civismo e de respeito pelas condições de vida de quem cá vive.
Eu explico, para não acharem que é mais um dos meus momentos italy-nostalgy (e ainda cá só estou há um mês!) ou de sentimentos apátridas:
Cinco pessoas foram hoje condenadas pelo Tribunal de Aveiro por terem cometido, ou ajudado a cometer, interrupções voluntárias da gravidez. Claro está que quatro dos cinco eram mulheres, ou não fosse a Eva a culpada de todos os males do mundo!
As mulheres que abortaram vão passar 6 meses na prisão.
Já devem ter passado por um sofrimento horrível, por semanas de indecisão, de sentimentos contraditórios, de peso na consciência (esse magnífico mecanismo de controle desenvolvido pela Igreja Católica). Ainda vão ter de ser encarceradas por terem tomado uma decisão pelo seu próprio corpo, decisão essa que alteraria toda a sua vida futura.
O fantástico de tudo isto é que quem tem dinheiro aborta na mesma, vai é aqui mesmo ao lado, a Badajoz onde não há só caramelos e charutos e que, ironicamente, foi um dos locais sugeridos pelo nosso maravilhoso governo para as mães portuguesas de Elvas (uma das muitas localidades que viram as suas maternidades serem fechadas) terem os seus filhos. Depois, muitas delas vêm cá para fora aplaudir os fanáticos religiosos que, mesmo em pleno século XXI, continuam a acreditar que a religião deve ter poder de acção numa sociedade laica e sempre menos católica.
Não tenho palavras. As vezes só gostava que as coisas mudassem, assim, de um momento para o outro...
Já agora, alguén sabe se aconteceu alguma coisa ao responsável daquele local em que foram apanhadas as criancinhas a trabalhar para a Zara? Ou se irá acontecer algo aos sacanas envolvidos nas merdas da casa pia? Mas privar crianças da sua vida enquanto tal parece ser um crime bastante inferior ao de decidir pelo seu próprio corpo...

3 comments:

Filipa said...

recebi este email hoje e achei por bem publicar, assim como a sua resposta...

Filipa said...

Olá,

Escrevo-te a propósito do teu post de hoje, a “a vergonha está em Aveiro”.

Confesso-te que me daria muito mais prazer fazê-lo a propósito de outras
palavras que distraidamente tenho lido no teu blog, palavras livres,
sentires vivos, vivos, muitas cores e muitos sítios e danças e voos, tudo
enquadrado numa certa anarquia semântica de quem escreve (e, parece, quase
tudo o demais) porque lhe dá prazer e, assim, apenas quando, e sobre, o que
lhe apetece, que me agrada, sim.

Mas não foi assim, não. O que me motivou a escrever-te foi o substrato que
pareces ter encontrado para justificar o aborto e que usas no teu texto: é
uma decisão da mulher sobre o seu próprio corpo.

Independentemente de toda a polémica que usualmente gira em torno deste
tema, da identificação da corrente de valores que normalmente uma e outra
posição revelam, gostava de conseguir perceber – assim tenhas tu paciência e
te pareça valer a pena o esclarecimento da curiosidade deste teu,
esporádico, mas bem intencionado, leitor – como consegues tu
intelectualmente retirar toda e qualquer individualidade ao embrião, ao feto
que se vai desenvolvendo no corpo da mulher e de que ela se livrará,
eliminará, com o aborto, de essa forma tão radical que te leva a
qualificá-lo como sendo parte do próprio corpo da mulher, e, assim, na sua
disponibilidade, que dele pode fazer o que entender.

Provavelmente, e antecipando já uma resposta, irás fixar um momento a partir
da qual já não é assim, o bebé na barriga já tem coração, outros órgão,
parece que já tem percepção sensorial, etc. (não conheço ninguém que defenda
um aborto no 8º mês). Mas, conta-me então, como é que de uma forma
intelectualmente honesta consegues fixar esse momento, um dia antes – a
mulher pode fazer o que quiser, é o seu corpo – um dia depois, não - já não
lhe pertence inteiramente, não o pode fazer.

Thanks.

C.

Filipa said...

(isto foi a minha resposta)
ola,
porque é que não colocas este mail no local dos comentários relativos a este post?
sinceramente, não, não te vou responder a partir de uma eventual datação de semanas, que isso não me interessa. Aquilo que me preocupa seriamente são duas questões, o facto de uma mulher ser penalizada gravemente por ter decidido não ter um filho que não deseja e o facto de esta penalização ser condicionada pela Igreja Católica, que continua a ter o poder suficiente para agir sobre um estado laico e onde um cada vez menor numero da população se identifica com ela.
Como mulher sinto-me no direito de poder decidir por mim e por tudo aquilo que a minha pessoa contem. Como mulher não católica sinto-me profundamente prejudicada pela Igreja, que sempre impediu as mulheres de acederem ao poder e às suas próprias vontades.
Como portuguesa, tenho vergonha que o aborto ainda seja penalizado, o que revela por um lado, uma incapacidade do estado de tomar medidas que possam afectar a Igreja e os seus fieis eleitores e, por outro, o grande atraso de portugal face à Europa ocidental, onde estas questões já foram tratadas há largos anos.
Há ainda uma questão: as pessoas penalizadas e forçadas a realizar tratamentos voluntarios da gravidez em más condições são aquelas que têm poucas condições económicas. Não acreditas que esta lei impede quem quer que seja de fazer o que realmente sente, pois não? O que se passa é que quem tem dinheiro, vai a clínicas no estrangeiro (não é preciso ir muito longe!) e quem não tem fica sujeito a isto...